Eraldo Luis P. Gasparini
O historiador Francês Georges
Duby é o organizador de uma obra muito importante na historiografia: A História
da Vida Privada. Esta obra é dividida em 5 volumes e trata justamente do
cotidiano das pessoas na Europa, desde a época da antiguidade clássica até os
dias atuais, mais precisamente o final do século XX. É uma obra vigorosa e trata daquilo que há de
mais trivial na vida das pessoas, o dia-a-dia. Mas esse olhar do cotidiano faz
entender as transformações que ocorreram na forma de vida das pessoas, de igual
forma no Brasil foi organizada uma obra, A História da Vida Privada no Brasil,
que trata do cotidiano das pessoas no Brasil desde a época do descobrimento até
o final do século XX.
No que essas obras nos ajudam?
Ajudam a compreender as mudanças e transformações que ocorreram e que nos
levaram a viver da maneira que vivemos nos dias de hoje. Tudo o que temos e que
somos é produto do ontem, se hoje as mulheres podem ser chefes de família, se
as pessoas podem ter um namoro “virtual” sem se tocarem ou se conhecerem
pessoalmente, se os homens podem viver isolados em apartamentos, é porque o
passado construiu esse presente, através das escolhas, adaptações, coligações,
conhecimento, descobertas tecnológicas que ocorreram no passar do tempo.
E com essa breve
introdução entro enfim no meu tema que é a família na atualidade, nesse começo
de século XXI, a família por mim definida como pós-moderna. Uma coisa que
reparamos na história é que a família no passado era um local de sobrevivência
dos indvíduos que pode ser notado na declaração contida no Salmo 127:3-5:
“Herança do SENHOR são os filhos; o fruto do ventre, seu galardão. Como flechas na mão do guerreiro, assim os
filhos da mocidade. Feliz o homem que
enche deles a sua aljava; não será envergonhado, quando pleitear com os
inimigos à porta”.
Esse texto
escrito provavelmente no 5º século a.C. mostra a importância de uma família
grande, os filhos são comparados a flechas que são armas de longo alcance, o
homem deve encher a sua aljava, o receptáculo levado as costas, ou seja, quanto
mais filhos mais bem armado e protegido estava um homem. A família grande era o
lugar de segurança e dentro disso, a unidade da família devia ser preservada, a
fidelidade de seus membros era essencial. Aos homens cabia a defesa dessa
unidade organizacional quer pelo trabalho, quer pelas armas, as mulheres cabia
gerar os indivíduos dessa unidade, quanto mais ela tivesse melhor para a
família, por isso, a maternidade era considerada sagrada, a mulher estava a incumbência
de gerar, criar, desenvolver a prole. Não havia métodos anticoncepcionais, as
mulheres geravam durante toda a sua vida fértil, de 10 a 12 filhos em média. E
quanto mais cedo ela pudesse começar melhor para a família, os critérios para
uma mulher poder casar eram os seios desenvolvidos e a menstruação, assim
geralmente a partir dos 14 anos de idade as mulheres estavam casando. Dentro
deste contexto a pior coisa que podia acontecer para uma mulher era ser
estéril, infértil.
A vida era muito
frágil, a picada de um inseto poderia com o tempo matar uma pessoa, não se
sabia a causa das doenças, não se sabia com clareza as formas de contágio e uma
simples infecção poderia levar a óbito, não havia antibióticos para
combatê-las, o princípio da vacina não havia sido descoberto. A média de vida
das pessoas ficava entre os 35 e 40 anos de idade. Assim a solidariedade entre
os membros da família era essencial, todos tinham que cuidar uns dos outros. É por isso que em I Samuel 17, Davi, o caçula
da família de Jessé, vai levar pães e trigo tostado aos seus irmãos mais
velhos. Este texto também mostra uma dura realidade que as famílias tinham que
enfrentar: a guerra. A guerra era uma adversidade que batia as portas dos lares
das maneiras mais cruéis, quando a mãe não enviava os filhos para o combate, o combate
chegava até os lares fazendo com que as mães fugissem as pressas carregando a
criança de colo num braço e arrastando pela mão a criança pequena no outro.
Isso quando, além do mais, ela não estava gestante. Por isso a mulher era
considerada sexo frágil, dentro da união entre um homem e uma mulher, ela era a
parte mais ameaçada neste contexto de dificuldades, precisando ser defendida e
protegida.
Da antiguidade
até a era moderna pouca coisa mudou, a mudança mais significativa vai acontecer
no século XIX com as transformações econômicas da sociedade. Tem início a
Revolução Industrial e as pessoas saem do campo e vão para as cidades, deixam
de trabalhar a terra e vão trabalhar nas fábricas e no comércio. A vida é controlada
pelo relógio agora, não mais o nascer e o pôr do sol e sem pausas para a sesta.
As famílias vivem confinadas nas casas. Dentro desse sistema ainda é essencial
que a família seja grande, para que a mesma possa oferecer mais mão de obra
àqueles que controlam as riquezas, os donos das fábricas, os comerciantes, os
grandes proprietários. Agora as famílias
estão em um novo ambiente, o urbano, por isso, essas famílias são modernas. A
modernidade exige que as famílias eduquem os filhos, porque agora é necessário
o domínio de novas técnicas, a matemática, a gramática, a lógica. Quem mais e
melhor educa os seus filhos, melhor possibilidade cria para a sua ascensão.
Assim temos a família moderna.
Durante o século
XX, a ciência aflora enormemente, temos a invenção do avião, do rádio, da
televisão, da bomba atômica. A medicina descobre o princípio da vacina, a
descoberta da penicilina e dos antibióticos, o que torna a saúde das pessoas
melhor. Os alimentos desidratados, as comidas instantâneas tornam a alimentação
mais fácil e prática. A água potável e encanada, a eletricidade gerando luz e
fornecendo energia para um enorme número de aparelhos. A comodidade acessível a
todos, claro que não de graça. Porém a grande inovação que mudará a vida das
famílias são os métodos contraceptivos, para antes do ato sexual a pílula
anticoncepcional, durante o ato sexual o preservativo ou camisinha, após o ato
sexual a pílula do dia-seguinte e se por algum deslize ou descuido acontecer à
gravidez, o aborto. Agora o casal, mais especificamente a mulher, tem o poder
de controlar a gravidez. Os seres humanos ao final do século XX têm um controle
até antes inimaginável sobre o ambiente em que vive.
E surge então o
que defino de família pós-moderna. Essa família não é mais como antigamente
formada pelo pai, pela mãe e pelos filhos do casal. O casamento antes
indissolúvel se transforma com a possibilidade da separação, primeiro através
do desquite e depois através do divórcio. Nada mais é sólido, tudo é fluído e
fluidificável. Essa família pode ser mono parental formada somente por um dos
pais e os filhos; pode ser a família mosaica formada pelo homem, a mulher, os
filhos da união anterior e os filhos da nova união; o casal sem filhos; o casal
de união homoafetiva; os solteiros sozinhos, o single person no termo
inglês ou lares unipessoais.
As pessoas
dentro dessa nova realidade não precisam mais uma das outras, a sobrevivência
que provocava a necessidade da solidariedade não mais existe. Se uma pessoa não
sabe cozinhar há os fast foods, a comida congelada, os marmitex; há as
maquinas de lavar ou as lavanderias para as roupas sujas; há as diaristas para
limparem a casa uma ou duas vezes por semana; a companhia vem nos sites de
relacionamentos, nos chats. O individualismo é a marca dessa nova realidade. A
liberdade sacrifica o companheirismo. Nesses tempos pós-modernos as pessoas não
pensam duas vezes em se separar quando se sentem incomodadas, desconfortáveis,
infelizes com o relacionamento. Provavelmente não há frase mais egoísta do que
“Eu tenho o direito de ser feliz” e não há justificativa religiosa mais
deturpada do que “Deus não me fez pra sofrer,
Deus me fez pra
vencer e ser feliz”. A própria fé se curva aos novos tempos.
Esta é a principal característica da família
pós-moderna ela se centra no individuo e não no grupo, as associações visam o
prazer e a felicidade das partes e não do todo, se esse objetivo não é
alcançado à associação se desfaz. A
frase síntese da pós-modernidade “tudo o que é solido se desvanece no ar”
também se aplica a família.
ARIES, Philipe; DUBY, Georges
(orgs.). HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA. 5 Volumes. Companhia das Letras, São
Paulo, 1990.
SEVCENKO, Nicolau (org.). HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO
BRASIL. 4 Volumes. Companhia das Letras, São Paulo, 1998.