quarta-feira, 16 de junho de 2010

A UNIVERSIDADE MEDIEVAL


Iluminura do séc. XV mostrando uma cena de aula na Universidade de Bolonha.



Eraldo Luis Pagani Gasparini*









A Universidade Medieval tem seu início por volta do século XII, as primeiras instituídas foram as de Bolonha, Paris e Oxford (TRINDADE, 1999, p. 6). Dentro da perspectiva da Idade Média e das pessoas daquele período a Universidade Medieval é um local sagrado, é um lugar marcado pela sacralidade, monges, clérigos, sacerdotes ali se reúnem para transmitirem e produzirem os saberes. A Teologia é a maestrina que rege todos os conhecimentos e sem ela nada se produz, é um período na Europa em que a visão das pessoas está centrada em Deus e seu o Verbo, do qual “nada do que foi feito se fez” (Evangelho de João 1:3) e, por conseguinte nada poderia ser feito sem Ele. O sagrado esta por toda à parte no sino anunciando o alvorecer ou à tarde na ave-maria, no calendário marcando as festas dos dias santos, no trabalho com a terra, no brasão dos nobres. Os seus símbolos estão espalhados por toda a parte, na choupana do camponês, na casa do citadino, no castelo do nobre, no hábito dos monges e das freiras, nos adornos da donzela e da matrona, dos barões, duques e príncipes ou na coroa dos imperadores.

[...] surgiu aquele período de nossa história batizado como Idade Média. Não conhecemos nenhuma época que lhe possa ser comparada. Porque ali os símbolos do sagrado adquiriram uma densidade, uma concretude e uma onipresença que faziam com que o mundo invisível estivesse mais próximo e fosse mais sentido que as próprias realidades materiais. Nada acontecia que não fosse pelo poder do sagrado, e todos sabiam que as coisas do tempo estão iluminadas pelo esplendor e pelo terror da eternidade. Não é por acidente que toda a sua arte seja dedicada às coisas sagradas e que nela a natureza não apareça nunca tal como nossos olhos a vêem. Os anjos descem à terra, os céus aparecem ligados ao mundo, enquanto Deus preside a todas as coisas do topo de sua altura sublime (ALVES, 1981, p. 39-40).
O sagrado a tudo permeia e invade até mesmo os recantos da Universidade. E por isso a Universidade é parte integrante dessa sociedade, atendendo as suas necessidades e aspirações, ora participando das mudanças, ora fomentando elas. Numa época marcada pelo sagrado os Magísters procuravam responder as demandas dessa sociedade.


Conhecer alguma coisa era saber a que fim ela se destinava. E os filósofos se entregavam à investigação dos sinais que, de alguma forma, pudessem indicar o sentido de cada uma e de todas as coisas. E é assim que um homem como Kepler dedica toda a sua vida ao estudo da astronomia na firme convicção de que Deus não havia colocado os planetas no céu por acaso. Deus era um grande músico-geômetra, e as regularidades matemáticas dos movimentos dos astros podiam ser decifradas de sorte a revelar a melodia que Ele fazia os planetas cantarem em coro, no firmamento, para o êxtase dos homens (ALVES, 1981, p. 41).
Essa percepção do sagrado fruto do Cristianismo com sua instituição principal a Igreja Católica Apostólica Romana incentiva a leitura e o estudo e a partir do século XIV há uma expansão na oferta de escolas; “o êxito da escola deve-se, em parte, ao papel da Igreja, que tem a obrigação de ensinar: é preciso estudar a Bíblia para chegar a Deus, e as palavras da liturgia não toleram imprecisão. Cabe à Igreja atrair fiéis, que devem conhecer as preces e os preceitos” (BEAUNE, 2004, p. 49). Esse incentivo ao ensino provoca alterações na sociedade medieval que se apropria da escrita para suprir as suas necessidades cotidianas. Com o aumento e o fortalecimento das cidades a educação torna-se uma vantagem para aqueles que dominam a escrita e a escola passa a ser uma escada para a prosperidade do indivíduo, scolae scalae (a escola é uma escada). Esse aumento de escolas provoca uma demanda por mais mestres que são fornecidos pelas Universidades. “É preciso, enfim, atrair um mestre. As regiões economicamente desenvolvidas, as grandes cidades próximas de uma universidade, concentram as vocações para o magistério” (BEAUNE, 2004, p. 49).

Segundo Hélgio Trindade (1999), “a partir do século XII a universidade é inventada e se institucionaliza apoiada no trabalho dos copistas e tradutores, que preservaram grande parte do legado greco-cristão para formar clérigos e magistrados”. No seu surgimento a Universidade adota os mesmos moldes de outra instituição medieval, as corporações de ofício, “em sua fase áurea, esta se organiza através do modelo corporativo (Universitas scholarium et magistrorum), em torno de uma catedral (Alma Mater), abarcando vários domínios do saber, como: teologia, direito romano e canônico e as artes” (TRINDADE, 1999, p. 7).
Analisando a constituição da Universidade na idade média, a Profª. Terezinha de Oliveira vai escrever que:

[...] era necessário o estabelecimento de leis que protegessem a Universidade e assegurassem a sua liberdade, posto que a sociedade percorria outros caminhos e interesses. Contudo, essas leis ou privilégios, como queiram denominar, não impediram que essa Instituição se aproximasse dos interesses da comunidade e, muitas vezes, correspondesse aos seus anseios.
Concomitantemente, também, verificamos a promulgação de leis reais e papais (portanto, governamentais) visando aos interesses imediatos das Universidades. Assim, [...] pretendemos analisar, em linhas gerais, as origens dessa Instituição, considerada como um local novo, próprio do saber, que comungava com os interesses da comunidade e era, legitimamente, reconhecida como um espaço fundamental pelo governo laico e eclesiástico do medievo (OLIVEIRA, 2005).
Ainda que percorresse “outros caminhos e interesses” e fosse “considerada como um local novo, próprio do saber”, a Universidade é filha de seu tempo e os homens que dentro dela havia o são mais ainda, Roger Bacon (1215-1294) da Universidade de Oxford é um frade franciscano; Tomás de Aquino (1225-1274) é o Doctor Angelus (O Doutor Angelical) e sua maior obra é a Suma Teológica. São homens da Universidade, mas também do sagrado. O espaço é novo, as idéias são novas, mas o sagrado também permeia a mente dos intelectuais e esta instituição voltada para a sapiência, contudo se aproxima dos interesses da comunidade e se torna alvo dos poderes seculares e eclesiásticos. A Universidade não é um corpo estranho à sociedade medieval, a sua forma de organização e a sua linguagem são familiares àquele universo.
Jacques Verger, especialista francês em história, cultura e ensino da Idade Média, em sua obra Homens e saber na Idade Média, irá observar que a Universidade Medieval nasce com autonomia:

[...] essas primeiras universidades, para além da diversidade das instituições, tinham em comum serem organismos autônomos de natureza corporativa. Ser autônomo significa ser mestre de seu recrutamento, poder dotar-se de estatuto, poder impor a seus membros o respeito a uma certa disciplina coletiva e a regras de cooperação mútua, ser reconhecido como uma pessoa moral pelas autoridades exteriores, tanto eclesiásticas quanto laicas, poder, enfim, organizar livremente aquilo que era a própria razão de ser da cooperação universitária, quer dizer, o ensino, os programas, a duração dos estudos, as modalidades de exames que sancionavam esses estudos e a colação dos graus que coroavam o êxito nos ditos exames. As universidades eram, em alguma medida, federações de escolas (VERGER, 1999, p. 81-82).
A sua importância vai pouco a pouco se afirmando ao fornecer seus serviços ora aos poderes eclesiásticos, ora aos poderes laicos que constantemente se viam tentando aumentar ou conservar suas áreas de influência. Tanto um como o outro acabavam fortalecendo a Universidade nessa disputa.
Sobre a questão do favorecimento da Universidade pelo poder papal, Jacques Verger escreveu em um artigo que:

[...] papas favoreceram o desenvolvimento rápido das primeiras universidades, ao colocá-las sob sua proteção direta. Em Bolonha, Paris, Oxford, Montpellier, Pádua e Salamanca, eles ajudaram os mestres e estudantes a se subtraírem do controle das autoridades civis e eclesiásticas, para se organizarem em corporações autônomas, senhoras do seu recrutamento, do seu status, da organização do ensino e da colação dos graus.

Em retorno, evidentemente, esperava-se que essas corporações formassem um número suficiente de juristas e teólogos, de que a cristandade necessitava para dar à doutrina e ao direito da Igreja a formulação moderna que lhe permitisse responder eficazmente às aspirações dos contemporâneos, inclusive das camadas importantes da sociedade urbana, e daqueles que viviam em torno dos príncipes (VERGER, 2005, p. 55).
Ora, não só os poderes eclesiásticos “namoravam”, se podemos assim dizer, a Universidade, os poderes laicos também estendiam os seus favores a ela:

No início do século XIII, o papa e os príncipes encaravam essas instituições como importantes pontos de apoio político e cultural. Em função disso, editaram leis e bulas com o objetivo de instituí-las, protegê-las e nelas intervir, tanto no ensino como nas relações entre estudantes e mestres e entre estes e a comunidade.
As principais universidades do século XIII, Paris e Bolonha, foram criadas por essas autoridades. Dois grandes exemplos da influência desses poderes na organização da universidade medieval são a Authentica Habita, de Frederico Barba Roxa, de 1158, e a bula de Gregório IX intitulada Parens scientiarum universitas, de 1231. Ambas foram promulgadas para proteger a vida e os interesses dos estudantes e mestres e para organizar a vida acadêmica (OLIVEIRA, 2007).

Esta era uma instituição nascida no meio da sociedade da época, com valores e percepções próprios daqueles que viviam aquela época, organizada como as corporações de ofício, também num modelo típico da época, participante ativa das mudanças, protegida pelos interesses dos poderes laicos e religiosos, ou seja, para aquele momento ela era uma instituição “sagrada” no sentido amplo da palavra e concomitantemente respeitada.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALVES, Rubens. O que é Religião. São Paulo: Brasiliense, 1980.

BEAUNE, Colette. Escola, a escada para a ascensão social. História Viva. São Paulo: ano I, nº. 5, p. 48-51, março de 2004.

OLIVEIRA, Terezinha. A universidade medieval: uma memória. In: IV Jornada de Estudos Antigos e Medievais, na Universidade Estadual de Maringá, outubro de 2005. Disponível em: . Acesso em 28 maio 2009.

OLIVEIRA, Terezinha. Origem e memória das universidades medievais a preservação de uma instituição educacional. Varia história, v.23 n.37, Belo Horizonte jan./jun. 2007. Disponível em . Acesso em 28 maio 2009.

TRINDADE, Hélgio. Universidade em perspectiva: Sociedade, conhecimento e poder. Revista Brasileira de Educação, n°. 10, Jan/Fev/Mar/Abril 1999. Disponível em Acesso em 28 maio 2009.

VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

VERGER, Jacques. O alvorecer das Universidades. História Viva. São Paulo: ano II, nº. 17, p. 52-59, março de 2005.